[SPOILERS] “The truth is told by whoever is left standing.” Nunca uma afirmação foi tão verdadeira como esta, especialmente neste que é um dos melhores dramas actualmente a serem exibidos na televisão americana.
A redenção. Característica típica da maioria das séries com que nos deparamos, é a sua tendência para nos oferecerem um episódio redentor dedicado à personagem que irá morrer. Pode ser a personagem mais irritante de sempre, desespero tanto de fãs como de detractores, mas, no momento derradeiro, tem de ter sempre o seu momento de glória, onde prova que, afinal, não era assim tão má, apenas incompreendida.
Felizmente, “Battlestar Galactica” não é uma é uma série qualquer e não nos tem forçado a aceitar redenções de última hora, algo que, numa série onde a linha entre o bem e o mal sempre se mostrou algo complexa, seria difícil de fazer. No desfecho deste motim tão violento, que consigo levou quase uma centena de almas, não há lugar a grandes discursos de despedida, muito menos a momentos redentores para os seus principais intervenientes. Aqui assiste-se apenas ao desenrolar natural dos acontecimentos, à morte dos principais opositores e ao final de uma crise que pode não ter tido o impacto que se esperava na trama global, mas que deixou marcas em toda a frota. E, no entanto… se tudo isto é verdade, se ao longo das temporadas sempre se respeitou a dicotomia entre o bem e o mal, porquê, então, vilificar desta maneira a personagem de Zarek (Richard Hatch)?
Desde a sua primeira aparição no início da primeira temporada, Zarek mostrou ser uma personagem interessante, um antagonista que, pela força das suas palavras, nos forçava a questionar os nossos ideais, as nossas alianças. De revolucionário a terrorista e a assassino, de prisioneiro a agitador e a vice-presidente, Zarek percorreu um longo caminho nestas quatro temporadas. O seu destino, esse estava já traçado desde que se tornou num dos líderes deste motim, mas a forma como aqui se transforma quase num vilão parece algo contrário à personagem que temos vindo a descobrir. Sim, Zarek nunca teve problemas em mandar matar, como vimos em “Colonial Day” ou mesmo nas montanhas de Kobol em “Home, part 2”, mas o assassinato do Quórum neste episódio parece algo exagerado para o Zarek que conhecemos desde New Caprica. Mesmo sabendo que, ao rejeitar Zarek como presidente, o Quórum assinou a sua própria sentença de morte, e mesmo que este órgão do governo colonial pouco tenha tido que fazer ao longo das temporadas, a cena do fuzilamento, os tiros e os gritos em pano de fundo, não deixa ninguém indiferente. Infelizmente, mais do que a cena em si, é a sensação de que esta foi apenas uma estratégia para agravar o fosso entre Zarek e Gaeta, entre as duas faces do inimigo, que tira algum do impacto à história. Mais do que pelas suas observações correctas, mais do que pela certeza de que Zarek foi o único que aderiu em plena consciência a este motim, aquilo que irá marcar a sua personagem a partir de agora são os actos de violência que aqui cometeu, algo que não deixa de ser uma injustiça.
Pelo contrário, a Gaeta (Alessandro Juliani) cabe o papel daquele que sempre tentou lutar pelos seus ideais, mas que acabou por pagar pelas suas convicções. O desespero ao descobrir o assassinato do Quórum, a convicção com que confronta Adama (Edward James Olmos) durante o “julgamento” em que insistiu, a raiva que demonstra pelo seu verdadeiro inimigo – os cylons, sempre os cylons, e todos aqueles que os ajudaram – todas estas emoções estão espelhadas no seu rosto, mas é talvez nos momentos mais calmos desta revolução que a personagem mais se destaca. No momento da decisão final, quando, nos aposentos do Adama, ordena o fuzilamento daquele que foi, em tempos, o seu líder, o seu modelo a seguir, conseguimos sentir a angústia de uma pessoa que perdeu o seu rumo. Ao longo de toda esta história, Gaeta esteve sempre do lado da razão, tentou defender as suas acções com o cumprimento da lei (“You want him to understand, I know you do”), tentou dar voz aos oprimidos que estavam a ser completamente ignorados por aqueles que detinham o poder. Mas as mortes e a violência que o perseguem, que o forçam a tomar decisões para as quais não estava preparado, têm um impacto tão grande que apenas no final, com o desfecho trágico, deixam de se fazer sentir.
Concordando-se ou não com a evolução da personagem, com o seu papel preponderante neste conflito e com o destino que lhe foi reservado, algo é impossível negar – Alessandro Juliani despede-se desta série com uma interpretação brilhante em todos os sentidos. “I hope that people realize eventually who I am”. As suas palavras para Baltar (James Callis) na excelente cena final deste episódio, não deixam de ser um testemunho da evolução desta personagem mas, ao mesmo tempo, abrem um dilema. Teria sido este motim apenas uma expressão das frustrações de um oficial que viu os seus sonhos destruídos? Apenas uma vingança pessoal? O que aconteceu aos ideais de democracia que Gaeta tanto defendeu, agora que o status quo regressou ao inicial?
Este é, talvez, o aspecto mais frustrante do episódio. A linha temporal que nos guia ao longo do episódio prova que, não obstante o que vimos em “The Oath”, o golpe foi extremamente rápido (tendo durado cerca de nove horas), que os amotinados não eram assim uma percentagem tão representativa da tripulação da Galactica, e que apenas graças ao factor surpresa o campo de Gaeta e Zarek conseguiu ganhar o controlo da nave. Apenas assim se explica a facilidade com que Starbuck (Katee Sackhoff) e Apollo (Jamie Bamber) conseguem resgatar os prisioneiros, como Adama convence os marines que o iam matar a juntarem-se ao seu lado, e como Romo Lampkin (Mark Sheppard) regressa à cena num cameo perfeitamente dispensável (haverá falta de advogados na frota? Precisam que Portugal exporte alguns?). Mesmo tendo em conta todos estes factores, fica a sensação que a resolução do episódio é apressada demais, fechada demais, o que acaba por tirar grande parte do impacto à história.
A poucos episódios do final, há que deixar de ter medo de arriscar, de levar os actos às suas últimas consequências. A poucos episódios do final desta história, espera-se que as personagens principais comecem a cair, e que as várias tramas comecem a convergir num único ponto em direcção ao final. Nesse sentido, o motim poderia ter trazido uma grande evolução à história. Mas o que temos, no final, é um regresso quase ao ponto em que nos encontrámos em “Revelations”. Os dois lados do poder – os militares e o governo – continuam intactos. As duas raças continuam a seguir caminhos completamente separados. A trama política termina para dar lugar à trama mitológica. E os grandes dilemas levantados nestes três episódios – a democracia, o direito de escolha, o poder do povo – são novamente silenciados com os tiros que ressoam no hangar.
Por todas estas razões, os momentos triunfantes, como a marcha para a vitória de Adama, e de júbilo, como o reencontro deste com a mulher que ama, tenham um impacto menor do que o esperado. Por todas estas razões, não é difícil compreender porque se acaba a apoiar Narcho (Sebastian Spence), do lado dos inimigos, pela convicção que demonstra, em vez que Kelly (Ty Olsson), que passa para o lado dos “heróis”, e que contribui para o final feliz da história.
Devido ao facto de “The Oath” se ter centrado nas lutas internas entre os humanos desta frota, a facção cylon foi praticamente ignorada. Mas, com a captura dos cylons e amigos nesse episódio, e com a fuga de Roslin (Mary McDonnell) para a basestar, esperava-se que este “Blood on the Scales” nos desse, finalmente, o tão desejado salto para o mundo dos robôs. Infelizmente, mais uma vez se notou aqui a relutância em conjugar duas tramas distintas. Sem um líder claro desde a morte de Natalie e do desaparecimento de D’Anna, o manto de liderança dos cylons rebeldes acaba por cair sobre Roslin, que não cede a ameaças e consegue aguentar a situação até ao restabelecimento da ordem na Galactica. Quem já tinha saudades da Madame Airlock teve neste episódio um regresso em grande, com o poderoso “I’m coming for all of you”, e a constatação de Gaeta, de que ao eliminarem Adama, transformam efectivamente Roslin num líder político e militar, é bastante certeira… não fosse o facto de, no final do episódio, tudo ter regressado à normalidade. Mais uma vez faltou aqui a coragem de levar a personagem mais longe, de explorar os paralelos entre a sua liderança dos humanos e dos cylons, transformando Roslin, efectivamente, no líder que, desde o choque de “Revelations”, se tem recusado a ser, no líder de que esta frota tanto precisa.
Se os cylons a bordo da basestar poucos minutos de destaque tiveram, tirando o aparecimento de mais uma Six (Tricia Helfer) que ainda agora chegou e já está na cama com Baltar, os cylons a bordo da Galactica, não tiveram melhor sorte. Depois de tudo o que se passou em “Guess What’s Coming To Dinner”, ver Athena (Grace Park) a nem piscar os olhos quando Caprica Six pega em Hera, concretizando assim o sonho da Casa da Ópera, parece deveras estranho, mesmo se a situação era, na altura, perigosa. Helo (Tahmoh Penikett) parece ter estado inconsciente durante praticamente todo o motim, e a sobrevivência de Anders (Michael Trucco) ficou guardada para os próximos capítulos. Safaram-se, mais uma vez, Tigh (Michael Hogan), graças às suas tiradas sarcásticas, das quais iremos sentir falta quando a série terminar, e Tyrol (Aaron Douglas), que depois de passar horas a passear pelas entranhas da nave, descobriu o verdadeiro inimigo que poderá vir a acabar com a Galactica de uma vez por todas.
No início da quarta temporada, há quase um ano atrás, Ronald D. Moore afirmou que, finalmente, a poderosa Galactica ia começar a mostrar a sua idade, a ressentir-se de tudo aquilo que já viveu, de tudo aquilo por que já passou. E se, por agora, esta é apenas uma fenda física, podemos especular que esta fenda representa muito mais do que o desgaste natural do metal, que é também uma alegoria ao cansaço desta frota, às pessoas que, há quatro anos, lutam pela sua sobrevivência, que vivem e morrem sem ver a luz ao fundo do túnel. Talvez seja este o verdadeiro início do fim para todos.
[starrater]